DIVERSIDADE, CONVIVIALISMO E EDUCAÇÃO Ralf Rickli 28.06.2008 |
Da seção 2: O CERNE DA PROPOSTA 2.2. O conceito de Convívio e seus campos de aplicação Da
seção 3: GRUPOCENTRISMO E DISCRIMINAÇÕES:
3.1. O retorno do reprimido: 3.2. Etnocentrismo, grupocentismo 3.3. Religião, fé e propaganda 3.4.1. Um pouco de terminologia 3.4.2. A homofobia como questão pedagógica 3.4.3. A presença estatística além das primeiras aparências 3.4.4. A possibilidade real de uma sociedade não-discriminadora |
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Da seção 2: O CERNE DA PROPOSTA2.2. O conceito de Convívio e seus campos de aplicação
Dentro deste conjunto de concepções, a palavra convívio pode ser entendida, em uma expressão mais simples, como “vivermos bem na presença uns dos outros sem termos que perder nossas diferenças”. Observe-se aí a palavra
“bem”: viver mal nem é propriamente viver, não passa de sobreviver – e não
é por uma mera “consobrevivência” que estamos trabalhando! De um modo um tanto mais técnico,
também podemos dizer que convívio é, em um sistema, a condição em que é ótima
(isto é: a melhor possível) a relação entre cada ser, cada um dos
outros seres e o todo do sistema. O mais importante, porém,
não é guardar definições em palavras, e sim entender que o conceito de
“convívio” é absolutamente diferente do de “união”: não implica em
nenhum atrelamento, nem em abrir mão das nossas diferenças. Para que haja convívio
não é sequer necessário que haja concordância – a não ser a concordância
quanto a respeitarmos reciprocamente os espaços pessoais e jeitos-de-ser uns
dos outros. Isso não significa que num estado de convívio não haja interação
– muito pelo contrário: é no convívio, e não na união, que as interações
podem chegar ao seu máximo de vivacidade e vitalidade, pois cada um tem o espaço
e o direito de expandir suas múltiplas possibilidades, e as interações se
constituem em articulações dinâmicas, que ligam sem restringir o movimento de
cada uma das partes. Portanto: as únicas coisas
que tenho que fazer pela unidade e integridade do todo são não atentar contra
o diferente – e colaborar, sempre pelo meio mais brando que ainda seja
efetivo, no sentido de que ninguém atente. Em outras palavras:
empenhar-me para garantir a pluralidade e a diversidade. De que isso tudo forme “um”, o próprio todo cuida; o
universo inteiro testemunha o tempo todo de que ele é perito nisso. Toda tentativa que eu, que sou apenas uma parte, fizer no
sentido de unificar só irá aumentar a divisão, já que não estou em
posição hierárquica para isso. Sou apenas, sempre, mais um irmão, nunca um
pai. E seria até cômico, se não
fosse trágico, como cada um de nós irmãos é tentado o tempo todo a
colocar-se como o representante mais adequado da autoridade do papai
perante os outros irmãos... Algumas frases de caráter aforismático podem ajudar a
sintetizar essas idéias: • Não
existe unidade senão na diversidade. • Só a
pluralidade nos une. • Ligados
em solidariedade por recusarmos vínculos artificiais, Além disso, é importante notar
que o conceito de convívio se aplica a outros campos além do que essa palavra
costuma nos evocar de imediato, que é o inter-humano. Nomeando: •
intra-humano ou psicológico: •
inter-humano: social, cultural, econômico, político; •
inter-específico ou ecológico: •
cosmológico (físico, filosófico, teológico) - ver adiante Até
este ponto, este artigo tratou quase integralmente do convívio
inter-humano. O convívio ecológico é abordado nas seções 2.3.6 e 2.4
(4), logo adiante. Cabem aqui, portanto,
algumas palavras sobre o convívio
intra-humano ou psicológico: assim como o corpo, também a psique
humana é complexa, constituída de muitas partes que têm necessidades tão
diferentes quanto são diferentes, digamos, as necessidades do intestino, as do
cabelo e as do cérebro. Essas diferentes partes também têm, portanto,
diferentes vontades, que nem sempre é fácil harmonizar. Além disso, sabemos hoje
que nossa consciência, apesar de ser o fenômeno fabulosamente misterioso e
poderoso que é – e de ser não menos que a base a partir da qual faz sentido
falar em liberdade – conhece muito pouco do psiquismo dentro do qual vive. O
campo inconsciente e subconsciente não inclui apenas conteúdos que foram
expulsos da consciência e reprimidos, como pensava Sigmund
Freud, mas também conteúdos ligados aos processos corporais (ver p.ex.
os recentes trabalhos do neurologista António
Damásio), as estruturas de funcionamento instintivas preservadas de
fases anteriores da evolução biológica (como se vê na teoria do inconsciente
coletivo, de C.G. Jung, ou na
do cérebro triúnico de Paul MacLean)
– e provavelmente ainda mais. Há portanto vastas áreas dentro de nós que tomam decisões
sem o conhecimento da nossa consciência – inclusive decisões mais sábias
que as que a consciência saberia tomar, mas que não deixam de ser negações
ou pelo menos insuficiências da nossa liberdade enquanto a consciência
não as conhecer. Um dos aspectos mais significativos do convívio interior é,
portanto, que a consciência possa crescer ganhando conhecimento de mais e mais
setores do nosso inconsciente, não para substituí-los ou para suprimi-los, mas
dispondo-se a aprender deles mediante o convívio. Um exemplo: em áreas tão
diversas quanto as Artes do Corpo, a fisioterapia, e a vida sexual, o bom
desempenho depende fundamentalmente do aprendizado da consciência com a
ancestral sabedoria do corpo – a qual não deixa de ser parte do
psiquismo pelo fato de estar vinculada à musculatura ou a outros órgãos fora
da cabeça.[1] Um pouco mais sobre o convívio
psicológico será dito no capítulo 3.2, enquanto que sobre o convívio
cosmológico estão reservadas algumas palavras para o encerramento
do artigo (seção 4). [1] Sobre esta área é interessante acompanhar as descobertas recentes da investigação neurológica (o que pode ser feito, entre outros caminhos, através de revistas sérias como Mente & Cérebro), mas também as investigações de autores do século XX como Alexander Lowen ou Moshe Feldenkreis, sem falar do próprio Wilhelm Reich. Também a tradição oriental da ioga tem muito a ensinar neste sentido. |
Da
seção 3: GRUPOCENTRISMO E DISCRIMINAÇÕES:
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3.2. Etnocentrismo,
grupocentrismo
Etnocentrismo é a tendência que temos de considerar os
valores e os usos do grupo em que fomos criados como sendo “os normais”, ou
o padrão em relação ao qual todos os outros seriam desvios ou variações.
Talvez o exemplo mais óbvio seja o do sotaque: não é incomum que paulistas
pensem que existe sotaque gaúcho, sotaque carioca, sotaque nordestino, etc.,
mas não o sotaque paulista – o qual soa gritante e reconhecível para os
ouvidos de um gaúcho, um nordestino, etc. Prefiro a palavra “grupocentrismo”, apesar de não
dicionarizada, pois “etnocentrismo” pode nos fazer pensar, enganosamente,
que se trate apenas de uma questão entre povos claramente diferenciados –
quando qualquer estranhamento entre diferentes “tchurmas” em uma escola já
é parte do mesmo fenômeno. É possível que o grupocentrismo seja o obstáculo mais
forte no caminho do convívio universal – de onde vem a pergunta: o que
poderíamos fazer contra ele no nível da educação? Como estruturar o processo
de educação de modo que ele não apenas deixe de reforçar os grupocentrismos,
mas atue ativamente na desmontagem da tendência geral ao grupocentrismo? Não se trata de uma questão fácil, pois estamos lidando aí
com estruturas profundamente arraigadas no inconsciente. Cabe observar ainda que não
se trata de pôr abaixo as características dos grupos – mas apenas de deixar
de tomá-las como motivo de separação ou mesmo de inimizade. Pois, afinal, se puséssemos abaixo os valores de um
determinado grupo, que valores poríamos no lugar? Apenas “valores humanos
universais”? Ora, a humanidade é muito vasta – e não há como viver
apenas com os poucos valores que são comuns a toda ela. O universal é a soma
de todos os locais, com suas diferenças, e não a supressão das
diferenças locais. Mas também não teríamos como funcionar carregando em cada
um de nós os valores de todas as culturas ao mesmo tempo... De modo que, no fim das contas, universal mesmo é o convívio. De qualquer modo, é fundamental substituir todos os
“centrismos” por um centrismo só: um “pan-centrismo”, em que tudo está
no centro – ou, pelo menos: em que qualquer ponto pode ser tomado como o
centro a qualquer momento, para determinado fim, sem esquecer que todos os
outros pontos também podem ser tomados como o centro a qualquer momento. |
3.3. Religião, fé e propaganda
Talvez este seja o ponto mais delicado para uma Filosofia do
Convívio – pois praticamente todas as religiões se vêem como guardiãs de
uma verdade absoluta, enquanto para o convívio precisamos tomar todas as
verdades como relativas (o que é a essência do capítulo 2.1 deste artigo). Não se trata aqui de negar que alguma verdade possa ser
absoluta – e é importante enfatizar isto –, mas de afirmar que não tenho o
direito de exigir que outro adote o meu julgamento quanto ao
que é absoluto, o que não é: tenho minhas razões e minhas intuições quanto
a isso – e ele tem as dele. As religiões propõem respostas a questões que a experiência
comum e a ciência não respondem. É freqüente a opinião bem-intencionada de
que por trás das diferentes religiões esteja um mesmo objetivo, ou que todas
elas sejam diferentes formas de buscar um mesmo absoluto – mas infelizmente
essa opinião não corresponde à realidade dos fatos: cada religião representa
uma aposta diferente quanto a como-é e onde-está o absoluto. E o fato
é que não há como verificar a correção de nenhuma dessas diferentes
apostas – pois elas se referem justamente aos campos sobre os quais nem a
experiência comum nem a ciência têm como dar palavra definitiva.[1] Rubem Alves, trançando
fios procedentes de filósofos como Soren Kierkegaard, Paul Tillich e Paul
Ricoeur, escreve alguns parágrafos belíssimos sobre a relação entre fé e dúvida
cuja transcrição literal seria excessiva, mas cujo conteúdo podemos tentar
reportar assim:[2] fé não é o contrário
da dúvida; fé e dúvida se pertencem; só faz sentido falar de fé lá onde não
podemos ver, lá onde as certezas do conhecimento são impossíveis. Mas não
podemos viver paralisados pela incerteza; a fé é então uma aposta, o
ato de coragem existencial com que se rompe a paralisia diante da incerteza.
Isso não quer dizer que os riscos desapareçam: onde não existe risco não há
necessidade de fé. Em suma: a fé é aquele ato com que, justamente onde não
se pode saber o caminho com certeza, nosso coração diz: eu aposto que é
por aqui. Creio que esta atitude preserva o
profundo respeito pela fé como necessidade do ser humano saudável (necessidade
psicológica, antropológica), e não como mero “desaperto dos fracos”, como
pensam alguns – e ao mesmo tempo define os campos de tal modo que possa ser
preservado o relativismo necessário ao convívio: fé é uma aposta no absoluto
– mas é a aposta pessoal de cada um de nós. Se quero, portanto, que seja preservado o meu direito de
fazer a aposta que minha mente ou meu coração me indicam como a mais correta,
preciso respeitar que cada outro também tenha o direito de fazer sua própria
aposta. Posso expor ao
outro a minha fé – e deixar que ele escolha fazer a mesma aposta, ou não.
Impô-la, jamais. E na verdade, nem mesmo tentar persuadi-lo: posso lhe expor as
razões que me levam à minha aposta. O passo seguinte, a persuasão, já é uma
forma de violência – que definimos sempre como a invasão do espaço decisório
do outro. A propósito disso, cabe lembrar
ainda que a violência da persuasão é exercida sobre nós todos os dias pela
propaganda. Com isso, tal violência se tornou usual – mas não por isso
aceitável ou justificada! Se realmente quisermos que se desenvolva na Terra um
convívio humano saudável e não violento, teremos mais cedo ou mais tarde que
eliminar essa forma de violência que é toda propaganda que vai além de expor,
mas tenta persuadir ou convencer. [1] Pretendo incluir no livro Filosofia do Convívio o artigo Crux, ainda incompleto, no qual se inclui uma demonstração de por quê essa distinção entre os campos da fé e da ciência jamais será removida – pelo menos enquanto o ser humano existir em forma corpórea. [2] Alves, Rubem A. Protestantismo e repressão, III, 3.0. São Paulo: Ática: 1979. |
3.4. Diversidade sexual
Este é um ponto que não pode deixar de ser mencionado por
sua importância pedagógica – mas para entendê-lo corretamente é preciso
que antes tenhamos claro o sentido que se atribui atualmente a alguns termos. É preciso ressalvar que
nem todos os termos a seguir são usados igualmente por todos os grupos e tendências,
de modo que alguns poderão considerar absurdo que sejam nomeados em conjunto
– porém a intenção aqui não é apresentar um sistema, mas apenas dar a
conhecer diferentes termos que circulam atualmente em torno do tema. 3.4.1. Um pouco de terminologia
Sexo
físico ou anatômico: é a diferenciação masculino-feminino no nível
puramente anatômico do corpo, de acordo com a presença destes ou daqueles órgãos.
É um nível relativamente inequívoco, exceto pelos casos de hermafroditismo,
relativamente raros. Gênero:
é um corpo de definições culturais do que seja “masculino”
e “feminino”: o que é considerado “próprio de homem” em uma cultura
muitas vezes é “próprio de mulher” em outra. Identidade de gênero é
portanto sentir-se identificado com o “ser homem” ou o “ser mulher” numa
determinada cultura – o que pode ou não coincidir com o sexo físico. Sexo
psicológico: é a sensação de “ser homem” ou “ser
mulher” até no nível físico – além da mera identificação com um gênero
ou modo-de-ser cultural. Orientação
sexual (mais exatamente: orientação do desejo sexual): não diz respeito a
“sentir-se homem” ou “sentir-se mulher”, e sim a sentir-se sexualmente
atraído/a por pessoas do mesmo sexo (homossexualidade), ou de sexo
diferente (heterossexualidade). Bissexualidade:
há controvérsias em torno desse conceito: para alguns trata-se da
condição natural normal do ser humano, que só optaria pela homossexualidade
ou heterossexualidade devido a fatores externos (culturais e outros); já outros
crêem que todo ser humano é estruturalmente heterossexual ou homossexual,
apenas que alguns de modo flexível o suficiente para também experimentarem o
comportamento oposto. Vê-se aí também que estão em jogo dois critérios
diferentes: de um lado, quais são as atividades efetivamente praticadas; de
outro, como é o desejo, como dado subjetivo, interior. Homossexualidade: a palavra
“homossexualismo” foi oficialmente banida, por não se tratar nem de um hábito
escolhido, nem de uma doença: a Organização Mundial de Saúde a retirou
integralmente no rol de doenças e distúrbios já nos anos 90; do mesmo modo os
mais importantes conselhos de medicina e de psicologia do mundo, inclusive no
Brasil. A homossexualidade é hoje entendida como uma variação normal da
sexualidade, a qual em boa parte dos casos é parte integrante ou estrutural na
personalidade, casos em que não se pode falar de “escolha” ou “opção”. Transexual:
é o indivíduo que sente que seu sexo psicológico diverge do sexo físico.
Transexuais com freqüência têm certeza desde pequenos que fazem parte do
outro gênero e/ou sexo, e não conseguem reconhecer o próprio corpo como seu,[1]
e é neste campo que se dá a busca de cirurgias de mudança de sexo. É
importante ressaltar que é um fenômeno independente da orientação sexual: a
maior parte dos/das transexuais deseja uma pessoa cujo sexo é diferente do
que ele/ela sente ter, e portanto não se sente homossexual. De modo
extremamente surpreendente, porém, existem pessoas que nasceram com sexo físico
masculino, sentiram-se sempre mulheres, e sentem que desejam outras mulheres de
modo homossexual, e não como homens (o caso complementar também é
verdadeiro). Trangêneros:
palavra adaptada do adjetivo inglês “transgender” e que se encaixa
mal na gramática portuguesa, terminou por se firmar como designação genérica
de pessoas que de um modo ou de outro se identificam com o gênero oposto. Há
p.ex. travestis (cross dressers) não no sentido de atividade
profissional, mas de pessoas, às vezes heterossexuais e casadas, que gostam de
se vestir como o sexo oposto (ou melhor: o gênero oposto). De volta ao ÍNDICE3.4.2. A homofobia como questão pedagógica
Como se pode ver, realmente cabe
aqui a palavra “diversidade”! Não cabe aqui um estudo que faça justiça ao
assunto mas, como já foi dito, há alguns aspectos a ressaltar devido à sua
importância pedagógica. Antes de mais nada, é preciso ter claro que, apesar do
grande aumento de visibilidade de 1995 para cá, de modo geral ainda é
generalizada e severa a discriminação contra os comportamentos e as pessoas
homossexuais, transexuais e transgêneros – a começar pelo fato de não se
reconhecer essas distinções. Para muitos, ainda “é tudo viado”, ou “é
tudo sapatão”. O grande agravante deste preconceito é que ele geralmente é
experimentado dentro da própria família. Ainda hoje é comum que pais se
expressem aos berros em termos como “eu preferia ter um filho ladrão ou
assassino que um filho viado”. Poucas coisas têm um efeito tão destrutivo sobre a psique
quanto sentir-se rejeitados pelos seus – por aqueles que teoricamente,
pelo menos em nossa cultura, são as únicas pessoas do mundo que têm obrigação
de “te proteger”. Estudos vêm constando que o índice de suicídios entre
adolescentes é três vezes maior quando envolve conflitos de identidade sexual
do que quando não envolve – porém descartam claramente que se trate de um
traço intrínseco à homossexualidade (o que quem sabe até ajudasse a
demonstrar que se trata de uma doença ou condição anormal...): o suicídio
vem como reação ao sentimento de ser rejeitado. Há um traço que emerge
desses estudos que é extremamente importante para o professor que trabalha com
adolescentes: Como um passo importante da construção de seu caminho da família para o resto do mundo, adolescentes costumam vincular-se psicologicamente a uma ou outra pessoa de referência, em quem sentem que vale a pena depositar seu afeto e confiança. Nos momentos de conflito quanto à sua própria identidade sexual, desenvolve-se intensa ansiedade sobre qual seria a reação dessa pessoa de referência à revelação da possível homossexualidade do adolescente. E os estudos apontam que com muita freqüência o suicídio ou tentativa ocorrem no momento em que fica claro que também a pessoa de referência os rejeitaria.[2] 3.4.3. A presença estatística além das primeiras
aparências
Para não discriminar ou rejeitar, é preciso entender – ou
pelo menos tentar entender. É altamente recomendável que todo educador busque
mais informações a respeito, o que hoje já não é tão difícil encontrar. Não
devemos, porém, perder a oportunidade de registrar aqui alguns pontos cujo
conhecimento faz diferença: •
Ao contrário dos preconceitos que já a apontaram como “vício burguês”,
“vício da civilização branca decadente”, “vicio” deste ou daquele
povo, a homossexualidade estrutural aparece em todos os povos, de todos os tipos
de cultura, e pelo que a História sugere também em todas as épocas, com uma
presença estatística quase invariável. •
Não se trata tampouco de fenômeno “antinatural”, como já se disse,
pois é comum entre a maior parte dos mamíferos superiores. Entre os primatas
é especialmente comum entre os macacos bonobos, machos e fêmeas, que chamam
atenção também por serem os que têm as relações sociais menos violentas
entre os grandes primatas. • A fração
homossexual da população tem sido estimada entre 5 e 10% do total; a tendência
atual parece ser mais no sentido de 5% – porém esse número é extremamente
enganoso: pode sugerir que os outros 95% fossem heterossexuais. Trata-se de um número
relativo à homossexualidade exclusiva ou estrita, onde é rejeitada toda
e qualquer atração pelo sexo oposto ou atividade sexual com ele – e a
porcentagem de heterossexualidade estrita (ou seja: de pessoas que jamais sentem
nenhuma atração e jamais se envolveriam com uma pessoa do mesmo sexo) não
parece ser muito diferente da porcentagem da homossexualidade estrita.
• A maioria da população seria portanto relativamente bissexual, parte dela com certo predomínio do lado homossexual, parte dela com predomínio do lado heterossexual. Dividida em que proporção? Infelizmente não disponho desse dado no momento, e nem sei se existe, pois a linha de pesquisa seguida por Alfred Kinsey[3] nos anos 50, que foi a que primeiro evidenciou esse tipo de dados, parece ter sido abandonada de 1980 para cá, com o recrudescimento do conservadorismo norte-americano. Em todo caso, Kinsey constatou nos anos 50 que 1 de cada 3 homens adultos norte-americanos relatavam ter tido pelo menos um contato homossexual na vida. • Alfred Kinsey também fez o seguinte diagrama hipotético da distribuição da orientação sexual na população (à direita, sendo uma das cores – a preta ou a branca, tanto faz – a orientação homossexual do desejo, e a outra cor a orientação heterossexual). As curva real resultante das estatísticas deve ser com certeza mais complexa que a linha do diagrama, mas não tenho conhecimento de que tenha divergido significativamente da hipótese: 3.4.4. A possibilidade real de uma
sociedade não discriminadora
O fato de que a maior parte da população
é no mínimo capaz de desejo homossexual, e ocasionalmente também
de atividade – ainda que não se sinta vinculada a essa forma de desejo e
de atividade de modo exclusivo – sugere que deveríamos buscar uma forma
de fato menos discriminatória de lidar com a questão, ou seja: em
lugar de “esses são os gays; eles são diferentes mas devem ser aceitos
mesmo assim (quando não tolerados mesmo assim)”, quem sabe um
discurso mais honesto fosse: “esses são os gays; será que eu/nós somos
tão diferentes deles assim? Afinal, de gay e de louco todo mundo tem um
pouco...” É sempre interessante lembrar o caso da Grécia
clássica, que parece confirmar essa visão: especialmente em Atenas, todos
os homens “de bem” tinham tanto atividade heterossexual (mulher e
filhos) quanto homossexual – esta em uma forma específica: todo jovem em
fim de adolescência era iniciado à vida sexual e social por um homem mais
velho, casado, em uma relação que durava alguns anos. Mais tarde ele mesmo
iria ser casado, ter filhos, e escolher um jovem para iniciar, seguindo uma
praxe extremamente respeitosa: ia visitar a família do jovem, mostrar que
era uma pessoa de bem e capacitada para essa missão, e pedir permissão de
que o jovem passasse a acompanhá-lo.[4]
Mas cuidado: com isto eu não estou dizendo que podemos simplesmente começar a seguir o mesmo modelo no meio de uma sociedade que o rejeita! A intenção é apenas mostrar que é possível ter uma sociedade para a qual essa questão não é tabu, mas que a aceita até no nível das instituições mais formais – mesmo não se tratando de uma sociedade que ficou conhecida como “símbolo de devassidão” ou algo assim (como ficaram os nomes de Babilônia e de Sodoma), e sim uma sociedade que respeitamos profundamente por suas realizações intelectuais, artísticas e morais. 3.4.5. Duas palavras sobre
diversidade sexual e religião
Finalmente: também aqui a dimensão
religiosa aparece como bastante delicada – mas não creio que se deva
deixar de enfrentá-la por isso. Primeiro de tudo, sendo aposta pessoal,
minha opção religiosa deveria servir para que eu oriente os meus
atos, não os de outra pessoa (o que na corrente religiosa cristã está
claramente expresso em Mateus 7:1). Segundo,
por sincera que seja a minha preocupação com o destino do meu irmão (nos
termos cristãos: a salvação), estarei fazendo um julgamento
teologicamente consistente ao considerar a homossexualidade inaceitável, ou
estarei usando a linguagem religiosa como disfarce para os preconceitos que
trago comigo de outras fontes? Exemplificando: o mesmo trecho do Velho
Testamento em que se busca apoio contra a homossexualidade considera um
grave pecado que o homem corte a ponta da sua barba (o que naquele momento
significava trair a identidade como membro daquele povo), e receber juros um
crime digno de pena de morte. No Novo Testamento é o próprio Jesus quem
diz: “quem disser ao seu irmão: idiota!” é “réu do fogo do
inferno”, e que “é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma
agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. E no entanto não se vê nenhuma organização
religiosa tentando libertar os ricos da sua riqueza para que possam entrar
no reino dos céus. Como não perguntar: “onde está a diferença?”
[1]
V. o filme Minha vida em cor de rosa [Ma vie en rose], dirigido
por Alain Berliner (Bélgica/França, 1997). [2]
Ramafedi, Gary (ed). Death
by denial: studies of suicide in gay and lesbian teenagers. Boston:
Alyson Publ., 1994. [3] Considero altamente recomendável, sobretudo para educadores, assistir a comovente biografia cinematográfica Kinsey: vamos falar de sexo, de 2005. [4] Ver p.ex. o capítulo sobre o tema no clássico livro de Henri E. Marrou, História da Educação na Antigüidade. A respeitabilidade dessa forma de relação dentro da sociedade ateniense também é atestada em diversos trechos de um dos mais famosos diálogos de Platão, O Banquete (ou Symposium). |
3.5. Quantos preconceitos
se pode tolerar?
A proporção de canhotos na população mundial é por volta
de 10%. Hoje se considera isso uma variação normal, e as escolas são
obrigadas a fornecerem carteiras adequadas aos canhotos. Há menos de um século,
porém, ainda se considerava que fosse um desvio a ser curado. Crianças
recebiam castigos físicos, humilhações, tinham a mão esquerda amarrada para
terem que escrever com a direita. Se você é destro imagine que amarrassem sua
mão direita e o forçassem a escrever, comer e fazer tudo mais com a esquerda,
para ter idéia da agressão que era feita a essas crianças “para seu próprio
bem”. Mais: argumentos teológicos
eram encontrados para mostrar que tais pessoas eram suspeitas de serem filhas do
mal. Por exemplo: Jesus estaria assentado à direita de Deus Pai, e portanto o
lado direito é do bem; por conseguinte, o esquerdo só pode ser do mal... Tanto
que o diabo faria o anti-batismo dos seus seguidores com a mão esquerda (é
irresistível acrescentar: como todos já tiveram a oportunidade de ver...) Não se trata de fantasia retórica nossa: há documentação
abundante desses e de outros atos de demonização do diferente. O assunto é inesgotável, mas em algum ponto precisamos
parar. E eu proponho que seja com o seguinte desafio, especial para pessoas que
se pretendem educadores, e mais ainda: educadores libertadores: Se
conservamos um só preconceito ainda somos preconceituosos. E poderemos esperar,
enquanto formos preconceituosos, que nossa ação tenha efeito autenticamente
libertador? [1] [1] Cabe lembrar aqui a etimologia da palavra preconceito: pré-conceito: ter uma imagem e um julgamento da coisa antes de conhecê-la de fato. Outra coisa é a crítica, no sentido superior da palavra: “passar por um crivo”, analisar em profundidade, e julgar a partir do conhecimento que se ganhou. Educadores não podem ser aceitadores a-críticos; nem pré-conceituosos. Trabalhoso? Ora, quem quer educar não pode parar nunca de se educar... |
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